Quem nasceu em Cuiabá ou mora faz anos na cidade deve ter ouvido por aí a lenda do minhocão. Essa estória apareceu em Cuiabá, em 1880, ocasião em que o padre Ernesto Barreto comprou um grande terreno onde está localizada, hoje, a região da Barra do Pari, berço dos tradicionais bairros do Santa Amália, do Jardim Araçá, do Flamboyant, Santa Isabel e Santa Rosa. Nossa família adquiriu uma residência, nos anos de 1990 lá, e todos os dias assistíamos o desfile das comitivas de peões apascentando aquele mundaréu de boiadas no meio das ruas dos bairros Flamboyant e Santa Rosa, os bois dividiam espaço com os poucos carros que passavam por ali naquela época, ou fugiam do trânsito escapando pela rua que não existia, hoje localizada entre um shopping e o Clube Círculo Militar, com saída para a antiga Perimetral ou BR 163/364.
A sede da fazenda ficava perto de onde existiu um imponente restaurante à beira do rio: O Varandão, era um casarão rústico, servia peixes, frangos e carnes e mantinha a cerveja gelada. A partir das 16h, a gerência liberava as instalações aquáticas para que a meninada pudesse brincar de pular no rio. A poucos metros do Varandão, ficava a sede da fazenda de Ditão. Era como se fosse uma vila secular que havia conservado seus costumes e tradições intactos, como se alheia à transformação urbana que se avizinhava.
Conta-se que, desde os tempos do Padre Ernesto até a enchente de 1974, em lugares como esse, uma fera lendária, parecendo ser uma minhoca de proporções colossais, surgia com força e fúria para fazer suas vítimas no rio Cuiabá. Virava barcos de pesca e mutilava os pescadores com seus dentes serrilhados e afiados. A comunidade já até sabia os hábitos que enfureciam o monstro, tais quais pescar com bombas e jogar cabeças de porco no leito do rio. Era o Minhocão.
Essa lenda Cuiabana do Minhocão do Pari, que também tem uma versão similar na região de Baús, próximo ao distrito da Guia, quando se fala, tem-se reverberando o discurso global da sustentabilidade que condena a exploração desenfreada dos meios e recursos naturais, promove a conexão com a natureza e nos convida a respeitar e preservar a toda a biodiversidade.
Aqui em Cuiabá, no berço de Pantanal, diante de tanta degradação, o minhocão parece não ter mais motivos para viver detido. Mas o povo cuiabano é povo de fé, pela lenda sabe-se que este ser está amarrado por três fios de cabelo de Nossa Senhora, e não pode ser liberto. Entretanto, há de se dizer, que este artigo evoca apenas a figura alegórica do Minhocão e a mensagem da busca pelo equilíbrio ambiental que ele transmite ao se manifestar com tamanha força e poder para aniquilar os criminosos ambientais sob seu juízo.
Sem qualquer ligação com a lenda, forças da natureza poderão despertar ataques imprevisíveis ao ambiente urbano da capital como consequências das ações predatórias ou poluentes como por exemplo: a deságua de esgoto in natura, sem nenhum tratamento, direto no Rio Cuiabá, hoje esse índice é maior do que 50%; o arremesso de qualquer tipo de inservíveis sólidos na beira dos córregos que cortam o espaço urbano: fogões, geladeiras, colchões, móveis, latas, garrafas, garrafões e todo tipo de lixo sólido que vai pra vala comum do velho rio, incluindo o descontrole da exploração mineral. E esses resíduos seguem pantanal abaixo como ícones flutuantes do despreparo, da inconsciência
e quando as duas qualidades anteriores estão presentes, resta-nos cabalmente o combate à inconsequência dos que estão preparados para fazer e não fazem da maneira que deveriam. Para dar conta dessa situação não há lenda em que se compare a uma tendência preocupante de auto destruição social por conta das péssimas práticas ambientais de parte significativa dos dirigentes e representantes do povo.
Precisamos valorizar os saberes populares, mesmo que pareçam um tanto infantis perante a ciência de hoje. É melhor mantermos o Minhocão detido em nossos imaginários do que viver as consequências dos extremos climáticos que recentemente flagelaram o Rio Grande do Sul. Melhor prevenir e tomar providências imediatas. O clima não está para brincadeiras na área da sustentabilidade. A conta da natureza tem sido alta demais para ser negligenciada, queiram ou não queiram a pauta ambiental é de natureza global, portanto sejamos globais em nossas ações locais, para o bem da humanidade. Ter uma Cuiabá desenvolvida e sustentável é uma decisão que só cabe a nós mesmos.
Jefferson Daltro é advogado em Cuiabá. Jornalista, Publicitário. Professor com Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea e Doutorando em Desenvolvimento Regional. É pré-candidato a vereador de Cuiabá pelo Cidadania/PSDB